Antimatéria fantasma 
e todos nós que perdemos
a guerra
por Caroline Ricca Lee 


CURADORIA YUDI RAFAEL
SESC PAULISTA  
2025


“She was just spoiled,” they say.
I want to shout,
‘She drank herself to death alone in a dirty room
on a broken mattress because
she was spoiled?’
(HEDVA, Johanna, 2024, p. 18)



PRÓLOGO

Meu pai deveria ter sido internado imediatamente, porém os hospitais públicos estavam lotados, então ele foi encaminhado a uma UBS (Unidade Básica de Saúde) pra aguardar uma vaga. No Brasil, esses postos de saúde são o prólogo para um atendimento pelo SUS (Sistema Único de Saúde), um trunfo da Reforma Sanitária, movimento consolidado entre 1970-80, durante e após a ditadura militar no Brasil, no qual a saúde não era um direito público até então. Seria esse um dos maiores triunfos não apenas brasileiro, mas progressista, democrático e de esquerda. Todavia, no pior país do mundo na gestão da epidemia do COVID, sob uma governança fascista que instrumentalizou a morte como política de Estado, o cenário de enlouquecimento social e crise sanitária seguia em vigor. Todo este prólogo para falar como quando adentrei o posto de saúde, tal lugar era o puro suco do caos. O que eu esperava também? Mesmo os vivos não pareciam vivos. Eu incluso. Ao adentrar as instalações completamente só, eu lembro de todos nós sermos apenas vultos em movimento numa paleta de cinza. Como toda zona de guerra, não haveria um balcão de atendimento para o aguardo ou repasse de informações, é cada um por si: para coletar seus pedaços, seus enfermos, ou seus mortos. De um modo no qual, os próprios pacientes ao aguardo de atendimento, sem sedação, mobilizavam-se em comunidade para desafogar tormento maior vivido pelos profissionais de saúde. Aquilo me fez sorrir por um segundo. Até se tornar um pesadelo. Era a quinta vez (ou mais) que dei a volta no posto inteiro, abria cortinas, entrava em salas, falava com um; com outro; me apontava: “O chinês! O chinês está lá”; outro dizia, “está lá, está lá! O chinês!”. Éramos todos pessoas racializadas, sabe. Mas naquele local, talvez eu e “o chinês” éramos os únicos amarelos. Isso diz tanto sobre a minoria modelo e a mobilidade de classe concedida aos imigrantes asiáticos na História do Brasil, e como—continuamente—sinto um certo despertencimento racial quando percebo minhas condições de acesso básico à saúde, por exemplo, destoarem drasticamente da realidade da maioria dos asiáticos e brasileiros. Ao mesmo tempo, no prenúncio das fake news como ferramenta de desinformação e polarização, inúmeros veículos falharam ao divulgar notícias sobre a pandemia e a China; o coronavírus foi racializado repetidamente através de um dinâmico fluxo de imagens producentes de uma iconografia viral: pessoas chinesas e seus mercados molhados—“degenerados destruidores do mundo moderno”. A máscara tornara o meu fenótipo uma espécie de propaganda racial. É dilacerante caminhar em um mundo no qual o seu corpo é a personificação, o rosto, de uma doença que ceifou 7 milhões de vidas. Até hoje eu tenho medo de usar máscara em aeroportos, ou de estar visivelmente resfriado, pois no final o fantasma do “vírus chinês” é um mito mutável incessante. Mas enfim, quem sou eu pra reforçar como a colonialidade do poder e a discriminação racial como arma de guerra seguem embebidas em cada célula das nossas vidas, especialmente na história do meu luto.

Quando finalmente achei um painel escrito à mão com os nomes e leitos, vejo um nome reconhecivelmente chinês, mas não. Não era do meu pai. Comecei a ficar tonta. Me sentía chapada. Chapada de dor. Chapada de raiva. O pior não era aquela porra de posto de saúde ser um labirinto de Éscher de mau gosto, me levando ao mesmo chinês que não era o meu pai; mas a aflição no acumulo de dúvidas: Onde raios ele poderia estar? Vim pra UBS errada? Será que vou chegar a tempo de me despedir? Até que finalmente pego um médico pelos ombros e digo: Por favor, me escuta por um segundo. Esse não é meu pai. Eu juro. Tem outro chinês aqui, por favor, me ajude a encontrar meu pai. Como saindo de um transe, o profissional de saúde volta pro corpo, entendendo a situação. Sou finalmente levada a uma sala escondida usada como uma UTI provisória, mas não poderia adentrá-la, pois os 3 pacientes lá estavam em estado gravíssimo: um deles, meu pai. É chocante a diferença dos estados de corpo em distintos espaços de tempo: pois naquele passado, eu não conseguiria atravessar a porta, mesmo havendo permissão. Atravessar seria não apenas dizer adeus, mas a quebra de uma quarta parede mórbida. Seria admitir a vida como flecha lançada sem volta e às vezes a direção mais próxima é água abaixo. Eu jurava que ele ia sair dessa ileso, sabe? Jurava. Como pude ser tão ingênua, nossa. No futuro, o ressentimento é um balde de água fria no qual me permito afogar por alguns segundos ao lembrar como nunca pude abraçá-lo uma última vez. Da pequena janela onde o observava, ele estava vestido com o mesmo moletom cinza que usava aos domingos! Lembro da excitação ao notar isso! Seguida da angústia. Nostalgia amarga. Eu amava muito esses domingos e as roupas nos quais encenávamos nossas cenas familiares… Ele estava de olhos fechados, parecia cansado e respirava pesadamente. O médico me dizia então que o estado pulmonar dele era grave, contudo, repentinamente, como se tivesse sentido minha presença, ele abre os olhos e me vê pela fenda da porta. Nossos olhos se cruzam, e ele se surpreende quando me vê pelo vidro, como se há muito tempo não via um rosto conhecido. Lembro do susto e do impulso em fingir estar tudo bem: aceno, sorrio, coração com as mãos. Maneirismos na busca de dizer coisas como “você não está sozinho”, “vai dar tudo certo”, “continue forte”—o vão otimismo para evadir a morte. Na trincheira, a esperança é realmente um privilégio vulgar. Ele pisca lentamente, consigo ver o esboço de um sorriso abaixo da máscara, seus olhos contráem-se em um risco gentil. Como uma criança, há uma doçura. Que face tão adorável poderia submergir da sua vulnerabilidade a ponto de minha garganta fechar em culpa. Culpa por ter percebido apenas naqueles momentos finais como ele foi um bom pai, apesar de não ser um adulto funcional. Ficamos apenas nos olhando. Pareciam horas, mas provavelmente devem ter sido segundos. Uma piscada longa: “Está tudo bem, filha”. Duas piscadas longas, levantar de sobrancelha: “Papai vai ficar bem”. Três piscadas: “Você pode ficar sossegada, não se preocupe”. Olhos fechados: “Por favor, vá embora. Não quero que você me veja assim”. Entre portas de ferro, janela de vidros riscadas, máscaras suadas, equipamentos hospitalares, criamos um vínculo de amor no qual entendi tudo. Eu entendi tudo. Tenho essa cena memorizada de forma dialógica, em palavras ditas, frases completas, mesmo sem ouvir sua voz. O aparelho de respiração começa a apitar, os médicos me empurram e entram com tudo nessa UTI improvisada, uma gambiarra institucional nascida na urgência do cuidado na emergência sanitária. Era agora. Agora. Mas… não. Ué, ainda não? Pois é. A pior parte da catástrofe não é sua intercorrência, mas a latência. São estados infinitos de esfarelamento. Nunca monolítico. A agonia sempre foi engrenagem no capitalismo. Bom, a realidade é que o aparelho respiratório estava desligado em pane há muito tempo, mas ninguém percebeu. Por isso meu pai respirava com dificuldade: ele não respirava pelos aparelhos. Mas não era essa equipe médica que falhara, mas talvez toda uma sociedade através do poder vigente. Enfim, religaram os aparelhos. Contudo, sou avisada de que não poderia mais ficar ali.




A GUERRA E TODAS AS SUAS SOBREVIDAS

A Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894—1895) é desencadeada pelo controle da Coreia, culminando com a China assinando o Tratado de Shimoseki, reconhecendo a independência coreana e cedendo ao Japão a Península de Liaodong, Taiwan e as Ilhas Pescadores. Contudo, o conflito  entre as duas nações apenas começava. Em 1931, o Incidente de Mukden provoca a invasão japonesa na Manchúria, sendo o prenúncio da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937—1945). Em 1937, durante seis semanas seguidas, Nanquim, capital de Jiangsu na China, foi aterrorizada pelo extermínio de soldados, assassinato de civis e refugiados, torturas e estupros em série. Sendo o número exato de vidas obliteradas impreciso quando a maioria dos documentos militares sobre o Massacre de Nanquim foram queimados após a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, porém estima-se 300 mil mortes, enquanto o The International Military Tribunal for the Far East (ou IMTFE) afere o número de 20.000 a 80.000 vítimas de violência sexual, incluindo crianças, gestantes e idosas. As consequências cruéis do evento histórico nomeado Estupro de Nanquim reverberaram ainda sob ordens do imperador Hirohito, quando implementa a expansão militar das “estações de conforto” como medida preventiva de “eventos semelhantes”, porém, tal política resultou na dispensa de trabalhadoras sexuais como forma de controle de doenças venéreas, consolidando a prática de rapto, coerção, calúnia com oportunidade de empregos inexistentes, segundo Okamoto (2013), de civis jovens e virgens, principalmente nacionais de territórios ocupados como Coréia, Filipinas, Taiwan, Cingapura, Indonésia, Birmânia, Tailândia e Vietnã (OKAMOTO, 2013).

Nomear como “traumático” o evento da uma etnicidade ser o mesmo de uma guerra seria ordinário demais. Uma herança mordaz e cáustica da poética transgeracional. No início do século XX, meus avós maternos chegam ao Brasil como parte do grupo de imigrantes japoneses trazidos como força de trabalho durante a expansão das plantações de café. Mais tarde, por volta de 1960, meus avós paternos decidem fugir da China em meio ao impacto da Revolução Cultural, e ainda em Macau—lugar de compartilhadas heranças coloniais portuguesas—chegam ao Brasil. Quando encontro nos documentos oficiais dessa família chinesa que o território de nascença de alguns era Nanquim, seria impossível não imaginar as latentes atrocidades, especialmente vividas pela minha avó, uma mulher na qual a crueldade e a beleza foram áxis constantes. Com certeza, ambas as famílias não premeditaram a convergência de narrativas em disputa na cidade de São Paulo. E a consequente cisão evidencia o cerne da minha pesquisa: Seria a ancestralidade uma forma de ficção? Ao possuir, como mantemos? Quando não, como inventamos? Um fruto reminescente da Guerra Sino-Japonesa per se. O imperialismo colonial é um membro fantasma carnificado em todos nós que descendemos de grandes conflitos.




A MORTE DO "EU" COMO A MORTE DE TODOS NÓS

Em 18 de julho de 2021, meu pai falece aos 66 anos no hospital público Planalto, localizado no bairro de Itaquera. No certificado de óbito, algumas das causas mortis são: choque séptico, doença pulmonar, falência respiratória, falência renal, disfunção hepática—inclusive, é impressionante a quantidade de motivos relatados—, mas a mais marcante seria: natural. Natural? No limite, nenhuma das mortes em uma pandemia poderia ser narrada como natural. Tomando o íntimo como território de contingência, me interessa refletir sobre o direito à memória e as vidas "passíveis de serem enlutadas" (BUTLER, 2014) em face das guerras nas quais todos nós perdemos. Estivemos algum dia vivos? Fato é, para além da Covid, o preâmbulo da morte de meu pai é narrativa dilatada que entrelaça sofrimento psíquico, depressão e abuso de substâncias. O alcoolismo foi seu paraíso em meio ao isolamento social. Atravessado por uma gênese familiar marcada por guerra, sinofobia e racismo estrutural. Nessa direção, evidencia-se como talvez esse pai não tenha sido contabilizado no grupo de 586.851 óbitos pelo novocoronavírus. Contudo, quando o definhamento psíquico é parte das estratégias de assimilação dos sistemas capitalistas e neoliberais, no qual a relação entre morte e capital não tange apenas o corpo físico, mas especialmente o corpo intelectual e cognitivo, começo a questionar todas as nossas perdas invisíveis e números ausentes nos registros de óbitos causados pelos eefeitos colaterais psíquicos da pandemia, especialmente entre afetados por questões de saúde mental e seus familiares. O apagamento de dados de óbito revela quais perdas são passíveis de luto? Há diferenciação de valor social entre a morte do corpo físico e o corpo mental? A morte de um eu psíquico com a destruição da cultura contribuiu com o etnocídio? Como o perecimento de modos de viver recai justamente sobre sujeitos historicamente excluídos, incidindo diretamente em suas vidas precárias em tempo de crise? Sob tal perspectiva, a intersecção entre raça, etnia e saúde mental implica diretamente nas vidas não contabilizadas e igualmente perdidas dentro do contexto pandêmico. Segundo a antropóloga e feminista Rita Segato, diante de outros grupos, as questões de gênero também incidem em diversas matrizes de sofrimento e esgotamento do estado de existir, culminando na desistência do viver—parte constitutiva do projeto capitalista de produção da diferença. A morte do “eu” sempre será uma morte de “nós”.

Para Grace Cho (2019), o silêncio assume forma de “vento infeliz”, sendo crucial notar o efeito assustador não produzido pelo trauma original, mas por tudo que habita em subterfúgio. Oculto. Uma forma espectral da diáspora revela-se na ausência de ancestralidade. Nessa direção, a maior das ironias seria como a experiência do luto, pessoalmente falando, não foi constituída de falta, mas da busca em mobilizar um novo corpo. Os primeiros dias foram como tentar caminhar com três ou quatro pernas. As primeiras semanas como fazer uma refeição com o peso de oito braços. Dormir diariamente com essa presença ventosa acoplada. Encontrar pacificação foi possível apenas na coreografia do luto: Como dançamos com as perdas? O corpo diaspórico é uma quimera em negociação com sua opacidade e translucidez. Por mais insolúveis que sejam tais perdas, talvez a ausência revele menos um vazio e mais uma presença pulsante. É na tentativa de preencher tais lacunas que novas narrativas emergem, ressignificando tanto o corpo quanto a memória, como gestos vivos de reparação.



NÃO SOMOS HERÓIS

A ruptura traumática na morte do meu pai não foi a perda de um “herói”. Muito longe disso. Foi perder o meu maior antagonista. Meu maior adversário. Um dos grandes algozes dos meus traumas. A podridão de sua figura iluminava um lugar santificado de existir. Ao perdê-lo, perdi o maior referencial: Seu avesso. Me criei a partir de sua não-imagem. E ao perder o mapa de todos os caminhos nos quais deveria desviar, quando literalmente, a maioria de minhas escolhas foram tomadas ao serem exatamente o contrário do que ele faria, acreditaria, ou mesmo almejaria, perco um referencial. Na adolescência, lembro de desafiá-lo constantemente, até ele levantar à mão sob meu rosto e eu gritar olhando em seus olhos: “Então, vai! Bate!!”; pois é, eu aprendi a desafiar o destino dentro de casa. Aprendi a dobrar aposta sob o mesmo teto. Ele me provocava dizendo como grande coisa eu não ia ser. Grandes lugares não estavam ao meu alcance. Nisso, ele me ensinou como sair da depressão familiar usando a própria raiva sendo combustão da melancolia. O ódio foi minha força motriz para sempre desejar mais. Ao dizer que eu não merecia o mundo, eu corria em direção ao mesmo. Ao dizer que não poderia, aquilo se tornava exatamente o meu maior desejo. Uma vida criada pela disputa. Ele era a figura do desamor, da solidão, da depressão, do egocentrismo, do gênio falido, do crítico de sofá. Ironicamente, no luto devem ser liberados hormônios semelhantes aos da gravidez (ou do orgasmo) na qual nessa infusão de liberações para manutenção da espécie e/ou sobrevivência, algo absolutamente traumático torna-se, gota a gota, menos pior. A amnésia das memórias ruins é relaxante, ao mesmo tempo, como desapegar do ressentimento estruturante da narrativa? Como agora criar um caminho autônomo? Singular. A morte é um raio que nos parte no meio, sendo revelada uma crua verdade sob si. Quando as lembranças ruins começam a desaparecer a cada ano, penso: como o corpo e a cultura são realmente capazes de nos enganar que algo “foi para o melhor”? Algozes de nossas crenças e fisiologias, tornamo-nos eternamente reféns da sobreposição do tempo.

A verdade é como a morte sempre esteve dentro de casa. Toda minha infância, antes de voltar da escola, lembro de pensar: É hoje que meu pai tirou sua vida? Tinha todos os dias medo de retornar. Ou mesmo de sair. Deixá-lo sozinho. Essa profecia foi entoada por todos a minha volta: mãe; suas amigas; sua família; o quanto o fim autônomo de sua vida era um evento iminente. Ainda criança lembro da minha pequenina cabeça pensar: Seria por uma arma? Corda no pescoço? Overdose de remédios? Nas minhas imaginações mais selvagens, nunca fui capaz de ver as causas reais. Especialmente o termo “natural”. Mas inesquecível mesmo é a culpa misturada com alívio ao receber a notícia de seu falecimento. Quando o hospital me liga, ainda na linha, coloco a mão na testa, outra na cintura, e deixo escapar “finalmente…”; até hoje eu queria dar um tapa na minha cara. Enfiar o suspiro goela baixo. Me sinto suja e imperdoável. Crescer com a ferida de nunca poder ter sido realmente criança, me preocupando cedo demais com problemas adultos demais, posterguei o meu próprio amadurecimento. Sempre neguei a ideia de responsabilização. Mas ele nunca quis que eu me preocupasse demais. Inclusive, quando era pequena, lembro nitidamente dele dizer: “Filha, meu pior pesadelo é ser um velho morimbundo sem dignidade de escolha. Eu prefiro morrer. Então, me deixe em uma cadeira de rodas do lado de uma janela em um prédio alto; eu mesmo pulo”. Quando finalmente estou pronta para assumir a sua interdição, ele literalmente morre. Não nesse salto, mas ainda sob seu controle. Nem por um segundo fui melhor do que ele. Mesmo em antagonismo. E por isso lembro como todos nós perdemos a guerra: pois nesse embate tão histórico e colonial quanto íntimo e familiar, não há vencedores. Ainda assim, a narrativa hegemônica cria sujeitos heróicos impecáveis e imbuidos de pureza, mesmo com suas mãos cheias de sangue. Uma história de poder e ausência forçada de outros.



INVISIBILIDADE COMO VIOLÊNCIA

Segundo Pierre Clastres, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito. O que busco relatar nesse ensaio é como a destruição sistemática da cultura e modos de vida reflete na morte de um existir, ser e pensar que atua através de um corpo psicológico. Ainda, como o declínio da saúde mental tange especialmente atores específicos, marcados historicamente por exclusão, violência e domínio. Em dados levantados pelas pesquisadoras Jenny Rose Smolen e Edna Maria de Araújo, Núcleo de Pesquisa em Desigualdades em Saúde, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Feira de Santana, "sintomas de depressão foram vistos mais em mulheres negras (52,8%) do que em mulheres brancas (42,3%)" (SMOLEN, ARAÚJO, 2016: 4024). Ainda, segundo a Antra—Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 42% da população trans já tentou suicídio, sendo que 85,7% de homens trans pensaram ou tentaram cometer o ato. Revelando aquilo que Butler constrói ao dizer: mulheres e minorias, incluindo minorias sexuais, são comunidades, sujeitas à violência [...]. Isso significa que somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social dos nossos corpos. Quando a violência segue tramada na construção do sujeito, seria o sofrimento psíquico forma de assombração transgeracional (CHO, 2019)? Ou seja, a violência da invisibilidade, na qual "não há violação ou negação dessas vidas, uma vez que elas já foram negadas" (BUTLER, 2014).

O contexto pandêmico, somado à crise política adjacente, impõe a noção de como nada no contexto da contemporaneidade pode realmente ser nomeado sendo ordinário. A violência da invisibilidade histórica incide sobre as vidas que deixam de ser enlutadas, em morte física ou colapso psíquico. Em uma crise de reconhecimento e visibilidade: quem é, afinal, considerado parte daquilo nomeado como “nós”? Todavia, Ailton Krenak nos revela como a crise atual impõe os abismos históricos que nos construíram como humanidade, na produção de inclusão e exclusões, mas principalmente sendo um momento no qual a dor e o luto sejam aqueles que possam realmente responder quem somos nós como humanos.



ANTIMATÉRIA FANTASMA E TODOS NÓS QUE PERDEMOS A GUERRA

“Antimatéria fantasma” é uma instalação comissionada para a exposição “Cartas à memória”, curadoria de Yudi Rafael, no Sesc Paulista, 2025. Para além disso, também apresenta-se em forma deste ensaio. A corporificação de uma análise, pesquisa, instalação, nasce da diluição de arquivos fragmentados: radiografias, ressonâncias, arquivos de imigração, documentos históricos, documentos de identidade, cartas deixadas como herança, e-mails, fotografias, cinzas mortuárias, álcool, lágrima e saliva. A obra atravessa os ecos das Guerras Sino-Japonesas, suas reverberações familiares e o contexto pandêmico no Brasil.

Em um país moldado por diásporas e tensões coloniais, no qual podemos mover os corpos dos territórios, mas dificilmente os territórios de tais corpos. Essas ausências—de nomes, de lugares, de memórias completas, de direitos de existir—não são apenas lacunas: mas entidades que insistem em existir na intimidade, e nas identidades, moldando narrativas e gerações. Corporificar um "mapa fantasma" é um gesto vivo: onde o luto não é fim, mas sua presença revela a reparação traumática não apenas em passado recente, mas com a guerra e todas as suas sobrevidas.



BIBLIOGRAFIA

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Tradução de Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

CHO, Grace M. Coreia Assombrada: Vergonha, Segredo e a Guerra Esquecida. Tradução de Matheus Almeida. São Paulo: Mimeo, 2019.

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência: ensaios de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

HEDVA, Johanna. How to Tell When We Will Die: On Pain, Disability, and Doom. New York: Hillman Grad Books, 2025.

KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

LUGONES, María. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.

OKAMOTO, Julia Yuri. As "mulheres de conforto" da Guerra do Pacífico. Revista de Iniciação Científica em Relações Internacionais v. 1 n. 1 (2013). Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ricri/article/view/17698/10136.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SHIMABUKO, Gabriela. A origem do Perigo Amarelo: Orientalismo, colonialismo e a hegemonia euro-americana, 2016. Disponível em: https://www.academia.edu/36755027/A_ori-gem_do_Perigo_Amarelo_orientalismo_colonialismo_e_a_hegemonia_euro-americana.

SHIMABUKO, Gabriela. Para além da fábula das três raças: uma introdução à percepção racial do amarelo e do japonês no Brasil, 2018. Disponível em: https://outracoluna.wordpress.com/2018/12/22/para-alem-da-fabula-das-tres-racas-uma-introducao-a-percepcao-racial-do-amarelo-e-do-japones-no-brasil/#more-3785.

Ipea lança edição especial sobre a pandemia e temas sociais. IPEA, 2021. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=38401&catid=10&Itemid=9>.

Precisamos falar sobre o suicídio de pessoas trans. ANTRA, 2021. Disponível em: <https://antrabrasil.org/2018/06/29/precisamos-falar-sobre-o-suicidio-das-pessoas-trans/>.

SMOLEN, Jenny Rose; DE ARAÚJO, Edna Maria. Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 22, núm. 12, diciembre, 2017, pp. 4021-4030. Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, Brasil.

SPIVAK, Gayatri. Quem reivindica alteridade? In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.










Phantom antimatter
and all of us
who lost the war
by Caroline Ricca Lee  


CURADORIA YUDI RAFAEL
SESC PAULISTA  
2025


“She was just spoiled,” they say. I want to shout, ‘She drank herself to death alone in a dirty room on a broken mattress because she was spoiled?’ (HEDVA, Johanna, 2024, p. 18)