Texto crítico por Diane Lima

31ª PROGRAMA DE EXPOSIÇÕES CCSP — 2021



Poderíamos dizer que é de tecidos e tessituras, moldes e filamentos que se constrói a prática artística de Caroline Ricca Lee se junto com estas estratégias e materialidade não estivesse diante de nós, o corpo.

Dotado de memória, este se refaz entre especulações daquilo que não foi alcançado pelo dito, mas que numa coreografia circular, se enuncia com seus vestígios em bordados, fotografias de arquivo e nas muitas máscaras que nos vestem como lugares tradicionais de pertencimento, deslocamento e conflito.

Corporificando tais experiências com o têxtil e o vestuário, Lee que é da terceira geração de imigrantes chineses e também da quarta geração de imigrantes japoneses, costura e expurga o atrito permanente das memórias marcadas pela guerra Sino-Japonesa e seus inúmeros traumas coloniais na exposição "terra/MÃE: trânsito de memórias e corpos-território em desterritório".

Trazendo o título que deriva da performance de longa duração terra/MÃE (2021) em que veste as roupas de familiares desconhecidos, no 31ª Programa de Exposições 2021 do Centro Cultural São Paulo, Lee retoma, amplia e remodela o corpo no espaço através de uma instalação site-specific composta por esculturas inéditas de tecido, vídeos, além de objetos e esculturas de cerâmica em alta temperatura.

Entre pernas e braços, bustos e rostos, seus trabalhos parecem nos fazer voltar às incansáveis questões que nos abre Saidyia Hartman sobre os arquivos da escravidão, que se não encontra correspondência direta à experiência de sua ancestralidade asiática, são fundamentais para nos ajudar a pensar os imbricamentos entre memória, arquivo e o drama daqueles e daquelas que viveram um relacionamento íntimo com a morte.

Como podemos ler nas linhas e entrelinhas de suas palavras, é desse modo que a sua prática artística questiona "como a homogeneização de etnias asiáticas é uma construção social com antecedentes na história colonial, quando a simplificação de corpos e identidades opera como instrumento para a assimilação de um povo ou indivíduo". Ainda segundo os seus pensamentos, "Em outros termos, é necessária a visão de como a Ásia abrange diferentes raças, etnias e culturas. Mas apesar desta pluralidade, continuamente o imaginário que acessamos sobre o território asiático, seus nacionais e descendentes, parte de repertórios inundados em eurocentrismo, discriminação racial e misoginia".

Assim como a memória, a peça se refaz mais uma vez. Seja saudando Aquelas que vieram antes de mim, título de uma obra de 2020 que reúne técnicas variadas como costura à máquina e pastel seco ou fazendo referência às histórias da oralidade em Mandíbula (2020), Lee engatinha nos primeiros saltos para percorrer paisagens diaspóricas em que o debate da racialidade no continente asiático se apresenta como um disparador para pensarmos trânsitos, migrações, esquecimentos e seus violentos apagamentos. Questões que aparecem ainda em Membros Fantasmas, título de um outro trabalho de 2019 em que fotografias, documentos de imigração e identidade de familiares constroem um meta-corpo com 50 ressonâncias e radiografias: "relaciono a doença genética hereditária do tecido conjuntivo que carrego e a síndrome de membro fantasma, à toda memória trazida em diáspora que não vemos, mas podemos sentir".

A problemática sobre como um corpo não-binário avança no uso inventivo da linguagem também aparece nas sobreposições que Lee mobiliza para a construção de sua narrativa incontornavelmente fragmentada e fronteiriça, em que identidade de gênero e assuntos como famílias de escolha dentro de uma vivência queer se tornam modos determinantes em suas composições.

As perguntas de Hartman então, são as mesmas que deixamos como uma resposta aos diálogos cosidos com Lee, quando roupas e cerâmicas esmaltadas performam nas esculturas alinhavadas pela memória do corpo e pelas dobradiças do tempo: "como a narrativa pode encarnar a vida em palavras e, ao mesmo tempo, respeitar o que não podemos saber? (...) Ou é a narração sua própria dádiva e seu próprio fim, isto é, tudo que é realizável quando a superação do passado e a redenção dos mortos não o são? E, de qualquer forma, o que as histórias tornam possível? Um jeito de viver no mundo no rescaldo da catástrofe e da devastação? Uma casa no mundo para o ser [self] mutilado e violado? Para quem - para nós ou para elas?"¹

Se sabemos como nos sinaliza Hartman que não é mais suficiente expor o escândalo, Lee parece aceitar o desafio de continuar especulando como seria possível gerar um conjunto diferente de descrições a partir do seu corpo-arquivo.

1¹ HARTMAN, Saidiya. “Vênus em dois atos”. In: Revista ECO-Pós (Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação), v. 23, n. 3, 2020, p.16. Disponível em https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640. 2021

Critical essay by Diane Lima

31ª CCSP EXHIBITION PROGRAM — 2021


We might consider that the artistic practice of Caroline Ricca Lee is constructed from fabrics and weavings, molds and filaments, unless, in addition to these strategies and materialities, we were faced with a body.

Endowed with memory, the body remakes to itself among speculations of what has not been reached by the spoken word, yet in a circular choreography, enunciates their own remains in embroidery, archival photographs, and the many masks that dress all of us as traditional places of belonging, displacement, and conflict.

Embodying such experiences with textiles and clothing, Lee, who is a third-generation Chinese immigrant and also a fourth-generation Japanese immigrant, sews and purges the permanent friction of memories marked by the Sino-Japanese war and the many colonial traumas at the exhibition "MOTHER/land: transit of memories and bodies-territories in deterritory".

Bearing a title that derives from the performance terra/MÃE (2021) in which the artist wears clothes of unknown relatives, at the 31st Exhibition Program 2021 of Centro Cultural São Paulo, Lee reclaims, expands, and remodels the body in space through a site-specific installation composed of previously unseen sculptures made of fabric, videos, and high-temperature ceramic objects and sculptures.

Among legs and arms, busts and faces, their works remind us of Saidyia Hartman's relentless questions about the archives of slavery, in which, although not directly related to the experience of Lee's Asian ancestry, are fundamental in helping us to think about the intertwining of memory, archives, and the drama of those who have lived an intimate relationship with death.

As we may read between the lines of they words, this is how the artist's practice interrogates "how the homogenization of Asian ethnicities is a social construction with antecedents in colonial history, when the simplification of bodies and identities operates as an instrument for the assimilation of a population or an individual". Also according to Lee's reflections, "In other terms, it's necessary to realize how Asia embraces different races, ethnicities, and cultures. But despite this plurality, continually the imagination we access about the Asian territory, nationals and descendants, departs from repertoires flooded with Eurocentrism, racial discrimination, and misogyny".

Similarly to memory, the act remakes over and over again. Whether saluting Those who walked before me, title of a work from 2020 that combines varied techniques such as machine sewing and dry pastel, or making reference to the histories of orality in Jaw (2020), Lee crawls in the first leaps to go through diasporic landscapes in which the racial debate on the Asian continent presents as a trigger to think about transits, migrations, forgetfulness, and violent erasures. Questions that also appear in Ghost Limbs, title of another 2019's work in which photographs, immigration documents, and family members identities construct a meta-body with 50 MRI's and x-rays: "I connect the inherited connective tissue genetic disease I bear and the ghost limb syndrome, to every memory brought in diaspora that we do not see, but we can feel".

The questioning of how a non-binary body moves forward in the inventive use of language also appears in the layers Lee mobilizes for the construction of what is an unavoidably fragmented and frontier narrative, in which gender identity and issues such as choosing families within a queer experience become determining ways in their compositions.

Hartman's inquiries, therefore, are the same ones we left as an answer to the dialogues sewn with Lee, when clothes and glazed ceramics perform in sculptures woven by the memory of a body and the hinges of time: " How can narrative embody life in words and at the same time respect what we cannot know? (...) Or is narration its own gift and its own end, that is, all that is realizable when overcoming the past and redeeming the dead are not? And what do stories afford anyway? A way of living in the world in the aftermath of catastrophe and devastation? A home in the world for the mutilated and violated [self]? For whom—for us or for them?"²

Although we know as Hartman points out that it is no longer enough to expose the scandal, Lee seems to accept the challenge to continue speculating how it would be possible to generate a different set of descriptions from their own body-archive.

² HARTMAN, Saidiya. "Venus in Two Acts". Small Axe 1 June 2008; 12 (2): 1–14. doi: https://doi.org/10.1215/-12-2-1.




31 Programa de Exposições CCSP, individual simultânea— Foto: Wallace Domingues